No livro “Quarto de Despejo – Diário de Uma Favelada,” Carolina Maria de Jesus relata, em poética e dramática linguagem cotidiana, a dura realidade da vida como catadora de lixo morando na extinta favela do Canindé, em São Paulo, que, na época, tinha cerca de 50 mil moradores.
Publicado em 1960, seu texto foi considerado um dos marcos da escrita feminina e negra no Brasil e já foi traduzido para mais de treze idiomas. Os registros de Carolina trazem uma perspectiva única das condições de vida extremamente precárias de uma moradora de favela no final da década de 1950 no Brasil, uma narrativa até então ignorada ou simplesmente desconhecida do público em geral, quiçá dos gestores públicos.
Seis décadas depois, através dos relatos do diário, com informações sobre a sua renda e custo de vida — dados que dificilmente teriam sido registrados nas vias formais —, é possível avaliar o custo de moradia e de mobilidade na cidade de São Paulo para um morador entre as rendas mais baixas da cidade em comparação com os dias de hoje.
Em algumas datas do seu diário, Carolina registra o quanto ganhava como catadora: Cr$ 41 em um dia ruim. Cr$ 12 por um saco de papel. Cr$ 65 em um dia aparentemente normal. Cr$ 140 em um dia que passou mal de tanto trabalhar. Alguns dias ela não saía para catar lixo, por indisposição, pela chuva ou para resolver algum problema dos seus filhos. Assim, se ela trabalhasse vinte dias por mês ganhando, em média, Cr$ 70 por dia, teria Cr$ 1.400 por mês. Como referência, em um período em que o país passou por inflação elevada, o salário mínimo foi corrigido de Cr$ 1.200 em 1952 para Cr$ 9.600 em 1960. Em boa parte da narrativa de Carolina vigorava o valor de Cr$ 3.800, estabelecido em 1956.
Segundo o diário, um aluguel na favela do Canindé era entre Cr$ 500 e Cr$ 600. Construtores informais gastavam Cr$ 4 mil para construir um barraco para venda, onde o preço chegava a Cr$ 11 mil. Ela cita o caso de uma outra moradora que queria vender o seu barraco por Cr$ 4 mil. Outro, bem construído, foi vendido por Cr$ 15 mil. O que chama atenção aqui é o preço do aluguel em relação ao valor do imóvel: atualmente uma prática de mercado estima aluguel em torno de 0,5% do valor total do imóvel. No caso da favela do Canindé, era de 5%. Isso se deve, possivelmente, à grande necessidade imediata por moradia para uma população que nunca conseguiria crédito para pagar o valor cheio do imóvel, mesmo que fosse um barraco.
Pelos seus relatos, ela provavelmente era proprietária do seu barraco, dado que nenhuma entrada do seu diário menciona a pressão pelo pagamento do aluguel. Mesmo assim, o custo para morar em um barraco de madeira, sem qualquer infraestrutura urbana, em um terreno que virava lama a cada chuva, representava um custo altíssimo, e se apresentaria como ônus excessivo do aluguel, comprometendo mais de 30% da sua renda com moradia. Ao mesmo tempo, no mercado formal, uma unidade de 30 metros quadrados no Ed. Olinda, que era construído à época dos diários de Carolina ao lado da igreja da Consolação, custava Cr$ 450 mil, cerca de 321 vezes a renda mensal de Carolina.
Carolina faz referência a outros valores da época: a passagem de bonde custava Cr$ 2. Depois aumentou para Cr$ 3. Meio quilo de carne, Cr$ 24–28. 1kg de arroz, Cr$ 30. Cr$ 44 por 1kg de açúcar, 1kg de feijão e dois ovos. Os efeitos da inflação da época são recorrentes nos relatos, assim como as propostas de controle de preços. Ela diz que “os preços aumentam igual as ondas do mar. Cada qual mais forte.” Não surpreende: a inflação foi de quase 90% nos dois anos entre 1959 e 60 em São Paulo. A água, que tinha que ser buscada em uma torneira, custava Cr$ 25 por mês, que ela relata ter ficado seis meses sem pagar. Com três crianças para alimentar, Carolina gastava praticamente tudo que ganhava em comida, buscando sobrevivência diária e relatando diversos episódios de tontura e mal estar pela fome.
Em 1958, uma passagem relata que o gasto mensal com ônibus para quatro passagens por dia chegava a Cr$ 600. O transporte coletivo da época, que também ainda contava com bondes (a última viagem de bonde seria em 1968, dez anos depois do relato do diário) mesmo considerado caro, era utilizado por Carolina em diversas ocasiões, evidenciando um mínimo de acessibilidade à rede de transportes. A cidade de São Paulo também era muito menos dispersa na época, e o Canindé, onde a favela se localizava, é no centro histórico de São Paulo, próximo à Sé. Carolina navegava pela cidade a pé, embora a cidade formal, de “tijolos”, fosse uma realidade muito distante da dela:
Quando eu vou na cidade tenho a impressão que estou no paraizo. Acho sublime ver aquelas mulheres e crianças tão bem vestidas. Tão diferentes da favela. As casas com seus vasos de flores e cores variadas. Aquelas paisagens há de encantar os olhos dos visitantes de São Paulo, que ignoram que a cidade mais afamada da América do Sul está enferma. Com as suas ulceras. As favelas. – Carolina Maria de Jesus
Como a pobreza urbana em São Paulo evoluiu desde então? Matérias recentes relatam que o aluguel de um cômodo em Paraisópolis, considerada uma favela cara de São Paulo, custa R$500 por mês. Nesse quesito, o aluguel consome 50% da renda de um catador de lixo reciclável ou de um entregador de aplicativo por bicicleta, que devem ora buscar a coabitação ora uma favela mais barata, talvez ainda em um barraco de madeira. A referência das quatro passagens diárias de ônibus citadas em “Quarto de despejo” custaria hoje cerca de R$350 mensais, mais de um terço da renda de um catador, não tão diferente da proporção em 1960 para uma catadora como Carolina. Já uma unidade bem localizada em um lançamento de mesmo tamanho das menores unidades do Ed. Olinda, de 30 metros quadrados,custa hoje cerca de R$300 mil, o que também representa mais de 300 vezes a renda mensal de um trabalhador entre as rendas mais baixas da cidade, indicando que o acesso a uma unidade no mercado formal também não mudou muito em comparação com os moradores mais pobres de 60 anos atrás.
O comparativo que mais chama atenção é que o carro mais barato em 1960 custava Cr$ 370 mil, enquanto hoje fica em torno de R$25 mil. Ou seja, enquanto no final da década de 50 o carro mais barato custava mais de 250 vezes a renda mensal de uma catadora como Carolina, que estava entre as pessoas com rendas mais baixas de São Paulo, o carro mais barato hoje custa 25 vezes a renda de um morador equivalente, que ganha em torno de um salário mínimo.
Ainda assim, políticas urbanas e econômicas visando incentivar o consumo e uso do automóvel, acessível para uma parcela ínfima da população na década de 1950, disparavam no Brasil, desde o famoso “governar é abrir estradas” de Washington Luís em 1920 até a própria construção de Brasília, cidade projetada para favorecer o trânsito de automóveis, por Juscelino Kubitschek justamente durante a época narrada em “Quarto de despejo.”
Embora tenhamos uma série de avanços na infraestrutura construída das favelas (muitas em São Paulo hoje são construídas em alvenaria de tijolos, o que seria um luxo para Carolina), assim como em programas como o auxílio aluguel, ainda que de forma limitada, a pobreza urbana deve ser analisada relativa à sua época, sendo visível o quão distantes ainda estamos da inclusão social da população no piso da pirâmide salarial. Ainda, as comparações, mesmo que estimadas, mostram total inversão de prioridades no planejamento urbano das últimas décadas: foi possível reduzir em dez vezes a acessibilidade a um automóvel, que se tornou um flagelo ao nosso trânsito e às nossas cidades, enquanto a acessibilidade à moradia e ao sistema de transporte coletivo se manteve inadequada.
Em meio à pandemia, na metrópole que continua a mais afamada da América Latina, ainda surgem favelas que se assemelham às condições de miséria do Canindé em 1960: barracos formados por restos de madeira sobre um terreno baldio sem pavimentação hoje são erguidos no Jardim Julieta, na zona norte de São Paulo. Se o objetivo fundamental do planejamento urbano é reduzir as desigualdades, pelo menos as últimas seis décadas temos fracassado miseravelmente.
Via Caos Planejado.